Tuesday, October 09, 2007

DOR NA ALMA

A Doutora sentada à secretária manda entrar o último doente.
Vê entrar o Sr. José. Segurava a boina com as mãos deformadas pelas artroses e pelo duro trabalho do campo. O Sr. José era viúvo, tinha pouco mais de setenta anos e tinha tido um AVC, mas aparentemente já tinha recuperado.
Sentou-se suspirando.
-Então diga lá o que o traz por cá? Pergunta a doutora.
-Estou muito mal, muito mal.
Era o que ela esperava ouvir e pergunta-lhe
-Mas dói-lhe alguma coisa?
Olha-a nos olhos e responde-lhe com prontidão.
-Dói-me a alma senhora doutora.
A doutora ficou a olhar para o Sr. José sem saber o que dizer. Tinha tirado um curso de Medicina e já trabalhava há algum tempo e não se lembrava de lhe terem ensinado que havia uma dor de alma. Pensou.
“Não deve ser grave” e explica com toda a suavidade.
-Sr. José se calhar eu não o consigo ajudar e para esse tipo de dor não conheço nenhum medicamento.
Olhou-o e percebeu que ele já sabia e sobretudo percebeu que o homem que tinha na sua frente estava realmente doente. A barreira da saúde e da doença é tão ténue.
Sabia que ele precisava de falar com alguém que estivesse disposto a ouvi-lo, somente ouvi-lo sem juízos de valor.
-Sabe doutora, os meus filhos, depois da trombose puseram-me num lar apenas para eu recuperar. No entanto, já passaram seis meses, eu recuperei completamente e continuo no lar. A minha casa foi vendida e eu vivo rodeado de objectos estranhos, pessoas estranhas, rotinas diárias a que não estava acostumado. Os dias passam-se à espera de nada.
A doutora sentada na sua cadeira limita-se a ouvi-lo, tem na sua frente um homem angustiado que vive uma vida que não escolheu. Não critica, nem uma palavra contra os filhos. Desculpa-os e engana-se a si próprio.
-Tem os filhos para criar e o dinheiro não abunda. Gostava de ver os meus netos mas eles não tem tempo, andam ocupados com o estudo.
A doutora sentia-se cada vez mais pequenina, perante tanto sofrimento, tanta mágoa e nenhuma raiva.
O Sr. José continuou a falar e no fim disse.
-Sabe? Não me curou, mas aliviou-me, esta dor da alma.
Naquele dia a doutora aprendeu que que a alma também dói e pode ser uma dor insuportável. Aprendeu ainda a respeitar mais a velhice.

Texto baseado num artigo publicado no jornal de Leiria por Joana Louro (médica)

Nos dias de hoje, viver a velhice com dignidade é, em muitos casos, um acto de heroísmo.

1 Comments:

Blogger nana said...

e de uma profunda e inspiradora humildade, com que todos deveríamos aprender...

um beijinho grande.

2:45 AM  

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