Tuesday, October 24, 2006

Fim de semana com chuva

Chove, chove muito, o vento assobia tornando-se numa melodia harmoniosa. A jardinagem tem de ser adiada. A lareira acesa, a leitura do livro “Histórias Maravilhosas do Oriente” de Pearl S. Buk, prémio Nobel da literatura em 1938, agarra-me. Já li vários livros desta romancista norte-americana, que viveu a maior parte da sua vida na China. A China é o cenário e tema habitual dos seus romances. Este surpreendeu-me pelo seu conteúdo, contos de encantar. Parecem infantis e simples e no entanto, há algo de profundo no tema central destes contos que vale a pena reflectir. Apesar da chuva foi um fim-de-semana muito agradável.

Tuesday, October 17, 2006

"O homem"

"Era uma tarde do fim de Novembro, já sem nenhum Outono.
A cidade erguia as suas paredes de pedras escuras. O céu estava alto, desolado, cor de frio. Os homens caminhavam empurrando-se uns aos outros nos passeios. Os carros passavam depressa.
Deviam ser quatro horas da tarde de um dia sem sol nem chuva.
Havia muita gente na rua naquele dia. Eu caminhava no passeio, depressa. A certa altura encontrei-me atrás de um homem muito pobremente vestido que levava ao colo uma criança loira, uma daquelas crianças cuja beleza quase não se pode descrever. É a beleza de uma madrugada de Verão, a beleza de uma rosa, a beleza do orvalho, unidas à incrível beleza de uma inocência humana.
Instintivamente o meu olhar ficou um momento preso na cara da criança. Mas o homem caminhava muito devagar e eu, levada pelo movimento da cidade, passei à sua frente. Mas ao passar voltei a cabeça para trás para ver mais uma vez a criança.
Foi então que vi o homem. Imediatamente parei. Era um homem extraordinariamente belo, que devia ter trinta anos e em cujo rosto estavam inscritos a miséria, o abandono, a solidão. O seu fato, que tendo perdido a cor tinha ficado verde, deixava adivinhar um corpo comido pela fome. O cabelo era castanho-claro, apartado ao meio, ligeiramente comprido. A barba por cortar há muitos dias crescia em ponta. Estreitamente esculpida pela pobreza, a cara mostrava o belo desenho dos ossos. Mas mais belos do que tudo eram os olhos, os olhos claros, luminosos de solidão e de doçura. No próprio instante em que eu o vi, o homem levantou a cabeça para o céu.
Como contar o seu gesto?
Era um céu alto, sem resposta, cor de frio. O homem levantou a cabeça no gesto de alguém que, tendo ultrapassado um limite, já nada tem para dar e se volta para fora procurando uma resposta: A sua cara escorria sofrimento. A sua expressão era simultaneamente resignação, espanto e pergunta. Caminhava lentamente, muito lentamente, do lado de dentro do passeio, rente ao muro. Caminhava muito direito, como se todo o corpo estivesse erguido na pergunta. Com a cabeça levantada, olhava o céu. Mas o céu eram planícies e planícies de silêncio.
Tudo isto se passou num momento e, por isso, eu, que me lembro nitidamente do fato do homem, da sua cara, do seu olhar e dos seus gestos, não consigo rever com clareza o que se passou dentro de mim. Foi como se tivesse ficado vazia olhando o homem.
A multidão não parava de passar. Era o centro do centro da cidade. O homem estava sozinho, sozinho. Rios de gente passavam sem o ver.
Só eu tinha parado, mas inutilmente. O homem não me olhava. Quis fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Era como se a sua solidão estivesse para além de todos os meus gestos, como se ela o envolvesse e o separasse de mim e fosse tarde de mais para qualquer palavra e já nada tivesse remédio. Era como se eu tivesse as mãos atadas. Assim às vezes nos sonhos queremos agir e não podemos.
O homem caminhava muito devagar. Eu estava parada no meio do passeio, contra o sentido da multidão.
Sentia a cidade empurrar-me e separar-me do homem. Ninguém o via caminhando lentamente, tão lentamente, com a cabeça erguida e com uma criança nos braços rente ao muro de pedra fria.
Agora eu penso no que podia ter feito. Era preciso ter decidido depressa. Mas eu tinha a alma e as mãos pesadas de indecisão. Não via bem. Só sabia hesitar e duvidar. Por isso estava ali parada, impotente, no meio do passeio. A cidade empurrava-me e um relógio bateu horas.
Lembrei-me de que tinha alguém à minha espera e que estava atrasada. As pessoas que não viam o homem começavam a ver-me a mim. Era impossível continuar parada.
Então, como o nadador que é apanhado numa corrente desiste de lutar e se deixa ir com a água, assim eu deixei de me opor ao movimento da cidade e me deixei levar pela onda de gente para longe do homem.
Mas enquanto seguia no passeio rodeada de ombros e cabeças, a imagem do homem continuava suspensa nos meus olhos. E nasceu em mim a sensação confusa de que nele havia alguma coisa ou alguém que eu reconhecia.
Rapidamente evoquei todos os lugares onde eu tinha vívido. Desenrolei para trás o filme do tempo. As imagens passaram oscilantes, um pouco trémulas e rápidas. Mas não encontrei nada. E tentei reunir e rever todas as memórias de quadros, de livros, de fotografias. Mas a imagem do homem continuava sozinha: a cabeça levantada que olhava o céu com uma expressão de infinita solidão, de abandono e de pergunta.
E do fundo da memória, trazidas pela imagem, muito devagar, uma por uma, inconfundíveis, apareceram as palavras:
- Pai, Pai, por que me abandonaste?
Então compreendi por que é que o homem que eu deixara para trás não era um estranho. A sua imagem era exactamente igual à outra imagem que se formara no meu espírito quando eu li:
- Pai, Pai, por que me abandonaste?
Era aquela a posição da cabeça, era aquele o olhar, era aquele o sofrimento, era aquele o abandono, aquela a solidão.
Para além da dureza e das traições dos homens, para além da agonia da carne, começa a prova do último suplício: o silêncio de Deus.
E os céus parecem desertos e vazios sobre as cidades escuras.
Voltei para trás. Subi contra a corrente o rio da multidão. Temi tê-lo perdido. Havia gente, gente, ombros, cabeças, ombros. Mas de repente vi-o.
Tinha parado, mas continuava a segurar a criança e a olhar o céu.
Corri, empurrando quase as pessoas. Estava já a dois passos dele. Mas nesse momento, exactamente, o homem caiu no chão. Da sua boca corria um rio de sangue e nos seus olhos havia ainda a mesma expressão de infinita paciência.
A criança caíra com ele e chorava no meio do passeio, escondendo a cara na saia do seu vestido manchado de sangue.
Então a multidão parou e formou um círculo à volta do homem. Ombros mais fortes do que os meus empurram-me para trás. Eu estava do lado de fora do círculo. Tentei atravessá-lo, mas não consegui. As pessoas apertadas umas contra as outras eram como um único corpo fechado. À minha frente estavam homens mais altos do que eu que me impediam de ver. Quis espreitar, pedi licença, tentei empurrar, mas ninguém me deixou passar. Ouvi lamentações, ordens, apitos. Depois veio uma ambulância. Quando o círculo se abriu, o homem e a criança tinham desaparecido.
Então a multidão dispersou-se e eu fiquei no meio do passeio, caminhando para a frente, levada pelo movimento da cidade.

Muitos anos passaram. O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso lado. Pelas ruas."



(Sophia de Mello Breyner Andresen, in Contos Exemplares)

Quantos pedidos de socorro ignorados. Quanta indiferença ao sofrimento. Muitos de nós, só quando não há nada a fazer é que tomamos consciência do que poderíamos ter feito e não fizemos para ajudar. É necessário alertar as consciências para lutarmos contra a exclusão social.

Wednesday, October 11, 2006

Ida à Aldeia

Mais uma ida à terra, quase deserta, que me viu nascer. Os dias estão espectaculares. O frio ainda não chegou e o sol brilha, por vezes, entre nuvens. Há neles uma espécie de magia que me dá prazer. Neste silêncio estranho sinto uma paz e uma tranquilidade Transcendente que me acalma. O gorjeio das aves, o perfume das flores silvestres, o aroma da terra coberta do orvalho matinal, os olhos a brilhar nos rostos enrugados, as plantas a nascerem por todo o lado, numa orgia de liberdade, as árvores a bailar dando-me notas de esperança. Neste paraíso, não há lugar para lágrimas e tristezas. Esta orquestra celestial, este coktail de aromas, este tapete multicolor transporta-me a um passado feliz e faz-me acreditar que vale a pena viver. Quando, à noite, a tristeza me invade penso em tudo isto e abraço o sono sorrindo.

Monday, October 09, 2006



POEMA ENJOADINHO
Vinícius de Morais

"Filhos...Filhos?Melhor não tê-los!Mas se não os temosComo sabê-lo?Se não os temosQue de consultaQuanto silêncioComo o queremos!Banho de marDiz que é um porrete...Cônjuge voaTranspõe o espaçoEngole águaFica salgadaSe iodificaDepois, que boaQue morenaçoQue a esposa fica!Resultado: filho.E então começaA aporrinhação:Cocô está brancoCocô está pretoBebe amoníacoComeu botão.Filho? FilhosMelhor não tê-losNoites de insôniaCãs prematurasPrantos convulsosMeu Deus, salvai-o!Filhos são o demoMelhor não tê-los...Mas se não os temosComo sabê-los?Como saberQue maciezaNos seus cabelosQue cheiro mornoNa sua carneQue gosto doceNa sua boca!Chupam gileteBebem xampuAteiam fogoNo quarteirãoPorém, que coisaQue coisa loucaQue coisa lindaQue os filhos são!
(Antologia Poética)"
Agradeço todos os dias, a Deus, a coragem de ter tido os meus filhos. Não foi fácil, reconheço, mas foi e continua a ser muito gratificante. Eles são uma das minhas razões de viver. Ser mãe é uma aventura muito bonita a que nenhuma mulher deveria renunciar.

Friday, October 06, 2006

Cinco de Outubro, ida à terra e colinho dos filhos. O dia esteve espectacular, convidava a um passeio e o local escolhido foi Dornes. Dornes é uma pequena pérola turística rodeada de água. A vista é magnífica e descobrimos uma casa de artesanato muito simpática, onde apreciamos as peças expostas e bebemos um café.

"O Rio Zêzere é um dos principais recursos hídricos do nosso país, e é também este Rio que trás toda a beleza paisagística a este local. Na década de 50 com a construção da Barragem de Castelo de Bode, esta albufeira tornou-se num dos maiores lagos artificiais da Europa, transformando toda esta região num importante pólo de atracção turística."